"Hábito de ler está além dos livros"
Autor: Amanda Cieglinski - Agência Brasil24/06/2012
Um
dos maiores especialistas em leitura do mundo, o francês Roger Chartier
destaca que o hábito de ler está muito além dos livros impressos e
defende que os governos têm papel importante na promoção de uma
sociedade mais leitora.
O historiador esteve no Brasil para participar do 2º Colóquio
Internacional de Estudos Linguísticos e Literários, realizado pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Em entrevista à Agência Brasil, o
professor e historiador avaliou que os meios digitais ampliam as
possibilidades de leitura, mas ressaltou que parte da sociedade ainda
está excluída dessa realidade. “O analfabetismo pode ser o radical, o
funcional ou o digital”, disse.
Agência Brasil: Uma pesquisa divulgada recentemente indicou que o
brasileiro lê em média quatro livros por ano (a pesquisa Retratos da
Leitura no Brasil, divulgada pelo Instituto Pró-Livro em abril). Podemos
considerar essa quantidade grande ou pequena em relação a outros
países?
Roger Chartier: Em primeiro lugar, me parece que o ato de ler não se
trata necessariamente de ler livros. Essas pesquisas que peguntam às
pessoas se elas leem livros estão sempre ignorando que a leitura é muito
mais do que ler livros. Basta ver em todos os comportamentos da
sociedade que a leitura é uma prática fundamental e disseminada. Isso
inclui a leitura dos livros, mas muita gente diz que não lê livros e de
fato está lendo objetos impressos que poderiam ser considerados
[jornais, revistas, revistas em quadrinhos, entre outras publicações].
Não devemos ser pessimistas, o que se deve pensar é que a prática da
leitura é mais frequente, importante e necessária do que poderia indicar
uma pesquisa sobre o número de livros lidos.
ABr: Hoje a leitura está em diferentes plataformas?
Chartier: Absolutamente, quando há a entrada no mundo digital abre-se
uma possibilidade de leitura mais importante que antes. Não posso
comparar imediatamente, mas nos últimos anos houve um recuo do número de
livros lidos, mas não necessariamente porque as pessoas estão lendo
pouco. É mais uma transformação das práticas culturais. É gente que
tinha o costume de comprar e ler muitos livros e agora talvez gaste o
mesmo dinheiro com outras formas de diversão.
ABr: A mesma pesquisa que trouxe a média de livro lidos pelos
brasileiros aponta que a população prefere outras atividade à leitura,
como ver televisão ou acessar a internet.
Chartier: Isso não seria próprio do brasileiro. Penso que em qualquer
sociedade do mundo [a pesquisa] teria o mesmo resultado. Talvez com
porcentagens diferentes. Uma pesquisa francesa do Ministério da Cultura
mostrou que houve uma redistribuição dos gastos culturais para o teatro,
o turismo, a viagem e o próprio meio digital.
ABr: Na sua avaliação, essa evolução tecnológica da leitura do
impresso para os meios digitais tem o papel de ampliar ou reduzir o
número de leitores?
Chartier: Representa uma possibilidade de leitura mais forte do que
antes. Quantas vezes nós somos obrigados a preencher formulários para
comprar algo, ler e-mails. Tudo isso está num mundo digital que é
construído pela leitura e a escrita. Mas também há fronteiras, não se
pode pensar que cada um tem um acesso imediato [ao meio digital]. É
totalmente um mundo que impõe mais leitura e escrita. Por outro lado, é
um mundo onde a leitura tradicional dos textos que são considerados
livros, de ver uma obra que tem uma coerência, uma singularidade, aqui
[nos meios digitais] se confronta com uma prática de leitura que é mais
descontínua. A percepção da obra intelectual ou estética no mundo
digital é um processo muito mais complicado porque há fragmentos e
trechos de textos aparecendo na tela.
ABr: Na sua opinião, a responsabilidade de promover o hábito da leitura em uma sociedade é da escola?
Chartier: Os sociólogos mostram que, evidentemente, a escola pode
corrigir desigualdades que nascem na sociedade mesmo [para o acesso à
leitura]. Mas ao mesmo tempo a escola reflete as desigualdades de uma
sociedade. Então me parece que, também, é um desafio fundamental que as
crianças possam ter incorporados instrumentos de relação com a cultura
escrita e que essa desigualdade social deveria ser considerada e
corrigida pela escola que normalmente pode dar aos que estão desprovidos
os instrumento de conhecimento ou de compreensão da cultura escrita. É
uma relação complexa entre a escola e o mundo social. E é claro que a
escola não pode fazer tudo.
ABr: Esse é um papel também dos governos?
Chartier: Os governos têm um papel múltiplo. Ele pode ajudar por meio
de campanhas de incentivo à leitura, de recursos às famílias mais
desprovidas de capital cultural e pode ajudar pela atenção ao sistema
escolar. São três maneira de interação que me parecem fundamentais.
ABr: No Brasil ainda temos quase 14 milhões de analfabetos e boa
parte da população tem pouco domínio da leitura e escrita – são as
pessoas consideradas analfabetas funcionais. Isso não é um entrave ao
estímulo da leitura?
Chartier: É preciso diferenciar o analfabetismo radical, que é quando
a pessoa está realmente fora da possibilidade de ler e escrever da
outra forma que seria uma dificuldade para uma leitura. Há ainda uma
outra forma de analfabetismo que seria da historialidade no mundo
digital, uma nova fronteira entre os que estão dentro desse mundo e
outros que, por razões econômicas e culturais, ficam de fora. O conceito
de analfabetismo pode ser o radical, o funcional ou o digital. Cada um
precisa de uma forma de aculturação, de pedagogia e didática diferente,
mas os três também são tarefas importantes não só para os governos, mas
para a sociedade inteira.
ABr: Na sua avaliação, a exclusão dos meios digitais poderia ser considerada uma nova forma de analfabetismo?
Chartier: Me parece que isso é importante e há uma ilusão que vem de
quem escreve sobre o mundo digital, porque já está nele e pensa que a
sociedade inteira está digitalizada, mas não é o caso. Evidente há
muitos obstáculos e fronteiras para entrar nesse mundo. Começando pela
própria compra dos instrumentos e terminando com a capacidade de fazer
um bom uso dessas novas técnicas. Essa é uma outra tarefa dada à escola
de permitir a aprendizagem dessa nova técnica, mas não somente de
aprender a ler e escrever, mas como fazer isso na tela do computador.
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por indicação do Bibliotecar
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